segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

último desejo

a morte veio a cavalo bater na porta da casa transparente em que morávamos. pensei morrer, senti bem de perto a frieza apagar a última centelha. e o ar repleto de ausência a me sufocar. uma goteira corroeu toda minha roupa. o que era desejo secou antes da última gota de vinho. sinceramente não era o que queria. ver o que construi com as mãos, esse amor que era uma cidade louca onde as pessoas morriam nas calçadas, agora todo embolorado. definhando. abandonado ao conforto das coisas e dos discursos caducos.

aos poucos sem festa, sem fogos de artfícios, sem lua. a cama nova em que nunca deitei apodrecia vazia no tempo. a vitrola calada esperava sua hora de ir também para o lixo, se é que o teto não desabasse e tudo virasse entulho com a próxima tempestade.
Justificar
as garrafas vazias amontoadas em cima da pia. as guimbas de cigarro espalhadas pelo quintal. a boca seca e o silêncio no andar de cima. até os matinhos insistentes que nasciam nas rachaduras do cimento, tudo com cara de morte.

outra vez na lona. esperei a contagem. eu estava nervoso. cansado. abatido. olhar desvairado. caindo de fraqueza. era a morte? sei lá. parecia.

mas resolvi ressuscitar alguma coisa por ali.

cuspi na cara da morte!

e cai dentro da noite, enquanto seguia os passos que todos desvelos de minha vida marcaram, ruminava suaves sinais sem rumo. e girava a noite velozmente sobre suas rodas invisíveis.

o vento soprou meu destino. um revertério no tempo e fui parar num botequim na Lapa dos anos
30.

sem estranhar mais nada, pedi um conhaque e uma cerveja ao garçon. ele trouxe. eu bebi. um homem debruçado no balcão cantarolava um samba antigo. intercalando a poesia boemia na batida da caixa de fósforo com uma tosse horrível de cachorro doente.

entre um verso e outro. tossia. e a intensidade da tosse era a mesma das palavras que saltavam de sua boca torta. o homem cuspia sangue e cantava os derradeiros versos dedicados a sua amada, a dama do cabaré.

sentei-me a seu lado e ofereci uma bebida. perguntei se precisava de ajuda. fiquei comovido com aquele pobre diabo. eu andava sentimental demais. as vezes me sentia um babaca por isso. em todo caso o homem recusou e agradeceu, me dizendo que aceitava a bebida, mas que não imaginava de que outra forma poderia ajudá-lo.

o homem bebeu rapidamente como se o mundo fosse acabar naquele instante. tossiu. tossiu . apertou-me uma das mãos e com a outra entregou-me um guardanapo dobrado.

saiu cambaleando, virou a esquina e sumiu.

eu acendi um cigarro e desdobrei o papel. era a letra de um samba. um samba triste. uma espécie de carta de despedida. expressando seu último desejo.

AOS AMIGOS DIGA QUE ME AMA. AOS QUE DETESTO DIGA QUE NÃO PRESTO.

foi assim que voltei a vida. tomando uma, às oito da manhã, num Bar da Lapa, em plena terça feira, pela primeira & última vez, com Noel.

meu coração voltou a bater.

2 comentários:

  1. perto de vc me calo, td penso e nada falo, dá vontade de chorar...

    bóra lá pra lapa!

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  2. Preyton,

    Manda um email pra mim (pra eu ver seu e-mail)??
    carolinacamarotti@msn.com

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