terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O apocalipse de um homem só

minha curta vida não foi fácil nem feliz. e como tantos outros que tiveram uma vida romântica ou perturbada, talvez, serei mais conhecido devido às vicissitudes dramáticas de minha existência do que por algum valor que venha a ter minha obra.

incapaz de adaptar-me às regras de meu tempo e meu ambiente, certamente nunca pude compreender a sociedade de minha época, uma burguesia decadente, amante da vida calma, que teimava em afirmar-se próspera diante de sua própria ruína. Uma classe de gente doente e traumatizada a qual eu não pertencia mas tinha que servir, mesmo a contragosto, pois de qualquer jeito o mundo era deles e eles viviam criando situações em que eu deveria participar a seu modo, tão cretino, porém, meu espírito nunca compactuou sinceramente com o dessa gente e por isso muitas vezes me tiveram por arredio e violento.

assim como eu não atendia a suas expectativas, eles não poderiam nunca compreender o possível valor de homem como eu. pelo menos foi assim que me senti desde que fui vomitado , pelas entranhas de mamãe, para me arrastar em seu estranho e degenerado mundo. como um dejeto que deve ser rejeitado pelo sistema de esgoto, eu fui tratado. pois sentia que algo em mim atormentava a ordem de sua vida. ou os fazia se recordarem de algo que precisavam esquecer para manter a sua normalidade. definitivamente, eu era alguém de que não precisavam e que faziam questão de ignorar. um verdadeiro estraga prazeres. um estrangeiro cuja presença de alguma forma sempre ameaçava a sua falsa paz. um inimigo nocivo ao seu aparente bem estar. alguém com uma alma tão sensível, capaz de um profundíssimo e comovedor afeto que sempre poderia causar alterações em seus mecanismos de controle. apenas com minhas palavras, eu já representava uma agressão a sua pseudo-consciência e seus recalques. e vice versa. ninguem saiu ileso. eu sofri. e por sua influência funesta muitas vezes me vi forçado a agir contra minha consciência, e, fiz merda também. pois em canto algum me sentia protegido. em parte alguma me senti em casa. sempre solitário. uma profunda voz por dentro que dizia não. um desejo na superfície que gritava sim.

nasci em março, numa pequena aldeia, em que meu pai era lavrador e minha mãe costureira. toda minha vida fui ligado a meu irmão, a quem sou grato, de quem não guardo mágoa e sentirei saudade.

após ter estudado um pouco, fui admitido numa universidade, no curso de filosofia, onde me aguardava desilusões amargas e meu destino trágico, pois tendo me apaixonado insanamente por uma filha da classe média, pedi-a em casamento e sofri uma recusa, seguida logo de outra, poucos meses depois ,e, em meu coração ferido e amargurado, começou-se a abrir a chaga da inquietude e do sentimento de frustração que nunca mais me abandonaram.

desanimado pelos fracassos atribuídos ao álcool e a escassa vontade de desempenhar qualquer atividade naquele mundo, abandonei as diversas tentativas e resolvi dedicar-me a algo mais sublime diretamente pelo exemplo de vida. decidi que viveria de acordo com minha consciência, a despeito da ordem reinante. então parti para as regiões obscuras do desconhecido, repleto de espírito místico, onde quis compartilhar das míseras condições de vida daqueles pobres diabos, que mais ou menos como eu sofriam do mesmo mal, renunciando ao pouco que tinha para dá-lo a quem fosse mais pobre que eu.

reunia-me com eles, à noite, em tabernas, e os instruía em matéria de espírito. falava a respeito da vida em geral e de como alguns homens dominavam tantos outros como nós e exploravam o seu trabalho e simplicidade. mas meu zelo foi julgado excessivo por muitos, que desconfiavam de minha conduta e de minha eloquência demasiado cadente e precisei interromper o que julgava naquele tempo ser minha missão.

assim, um novo insucesso vinha juntar-se aos precedentes e agravava em mim a sensação de derrota. meu pai, que mesmo em sua parca condição, foi procurar-me para levar-me de volta ao lar, encontrou-me acabado e desanimado.

para salvar-me do máximo desalento, justamente então, manifestou-se em mim a revelação de minha vocação de escritor. em casa de meu pai, não permaneci muito tempo, porque, impelido por minha inquietação, passei a perambular, indiferente ao frio e à fome, vivendo apenas de pouco auxílio que recebia de meu irmão. comecei então a escrever em janeiro daquele ano.

uma nova tentativa de constituir família terminou noutra desilusão, porque uma moça, violentada por seu antigo amante, que eu pedira em casamento, recusou-se contrair novas núpicias, por medo, fraqueza e insegurança. exatamente um ano depois, outra crise sentimental: uma jovem apaixonara-se por mim, mas sua família se opôs ao enlace com um homem que gozava de péssima reputação, e a moça tentou suicidar-se.

agora, já as esperanças de viver uma vida serena e normal tinham desaparecido, minhas primeiras paixões haviam naufragado e eu trasnferi para a literatura toda minha sede de amor. no começo recebi o incentivo de uma amiga, também escritora, que me animava e me aconselhava em meus primeiros passos. em princípio procurei retratar, sobretudo, os humildes, inspirado na vida dura e mísera de camponeses e operários.

eu trabalhava, com ardor, em um pequeno quarto alugado que me servia também de refúgio e abrigo; ali fazia dar voz a meus modelos, heróis sem sobrenome que labutavam na terra ou em fábricas, gastando a maior parte de sua vida a alimentar e a construir o luxo de uma minoria abastada. mas também a gente da terra e do gueto olhava com desconfiança e com sempre crescente aversão essa minha atividade, ainda mais com a morte de meu pai. infelizmente os pobres pensavam com a cabeça dos ricos. precisei deixar também aquele ambiente, onde demonstravam-me, abertamente, total hostilidade.

saí novamente em busca de algum canto onde pudesse desenvolver minha arte e dedicar-me ao aprofundamento e ao estudo de novas técnicas. de fato nesse período minha escrita sofreu uma verdadeira revolução. em contato com a cidade grande pude observar novas tendências que vinham se impondo, uma nova escrita parecia surgir, não obstante o ceticismo dos ambientes ainda acorrentados às tradições. e eu, sempre ansioso por aprender, por experimentar novos caminhos que me permitissem exprimir melhor meu mundo interior, segui com entusiasmo as novas teorias, especialmente no que dizia respeito à escrita livre.

em breve as luzes aterradoras daquela cidade cinza não mais me bastaram: a vida nos grandes centros cansava-me o organismo pouco resistente e já debilitado e resolvi partir novamente em busca de uma luz mais ardente de nova inspiração.

fui para o interior e ali se operou em mim novamente uma mudança drástica , que consequentemente refletiu-se em minha expressão. descobri ali um ar mais puro, menos pesado, e um sol ardente e radiante: embebedava-me de luz e trabalhava encarniçadamente, dia e noite, ao ar livre, para traduzir no papel a beleza que aquela paisagem fornecia ao meu espírito.

a pena e a letra tinham sofrido uma nova e profunda metamorfose: tudo surgia, agora tomado de luz e calor. quis exprimir dominantemente aquela força mágica que nutria tudo de vida, seu ardor e esplendor que tanto encantamento exerciam em minha alma.

nesse período sonhei fazer de minha casa o centro de um grupo de amigos, que vivessem em comunidade, como faziam os monges antigos. convidei, a princípio, alguns, os mais caros e próximos no intuito de iniciar a realização de meu sonho e alguns realmente vieram. de minha parte os recebi com entusiasmo, porém, logo nossos temperamentos se mostraram bastante diversos e nossos pontos de vista a respeito da vida, mesmo em matéria de arte, assaz discordantes, para que a harmonia entre ambos pudesse durar muito tempo; iniciaram a surgir os contrastes, as brigas sempre mais acesas. de fato, meu equlibrio nervoso era perturbado pelo excessivo trabalho, pelo muito beber e fumar. num bar, após discussão, que gerou briga aberta, eu, perdendo todo o controle, atirei um copo à cabeça de um amigo, que resolveu imediatamente me abandonar. na noite seguinte, eu o persegui com uma faca; depois regressando a casa, arrebatado por uma crise de violência, cortei os pulsos, mas não morri. este incidente dramático estragou nossa amizade para sempre. ele partiu e eu fui internado num hospital. mais tarde comceçaria a tentar novamente, apesar da fraqueza crescente e da falta de estímulo, todavia o desespero começava a dominar-me.

os cidadãos do lugarejo se revoltaram contra mim e protestaram contra aquele tipo estranho e violento até que fui internado numa clínica para tratamento de moléstias mentais. ali também busquei dominar a desoladora solidão, para não deixar-me envolver pela deprimente atmosfera, e recomecei a escrever, procurando, na literatura, a salvação da angustia que queria devorar-me. escrevi a princípio sobre o pátio do hospício, as arvores, os bancos, os enfermeiros, os doidos, enfim sobre a triste rotina daquela gente excluída pela loucura dos outros. mais tarde aproveitando a liberdade que me concediam voltei minha atenção para outra espécie de insanidade, para o céu, para os campos e para os trabalhadores braçais que se acabavam na labuta diária. quando não podia sair escrevia ,sob o efeito de sedativos, tentando reproduzir mais ou menos o testemunho dos enfermos e dos guardas e enfermeiros que labutavam por ali. nos escritos dessa época o otimismo é menos vivo ou quase inexistente. nenhuma luz banhava as palavras que brotavam violentamente da penumbra, bastante pessoal, realmente triste. escrevi sempre em primeira pessoa, pintando um autoretrato, em que se nota muito estudo psicológico, porque revela, claramente, o doloroso estado de alma em que me encontrava.

desde algum tempo, meu irmão casara-se, e eu sentia-me cada vez mais humilhado e envergonhado por viver praticamente às custas de sua generosidade. finalmente, após alguns meses, como se a permanência por mais tempo no convívio de alienados ameaçasse fazer vacilar minha mente já bastante fragilizada, fui despachado do sanatório, por influência dele.

busquei nesse tempo inutilmente um alívio para minha fadiga, desejava um pouco de paz e serenidade, coisas que nunca poderiam ser encontradas nesse mundo. de fato, ambiente algum seria capaz de restituir-me a calma e a saúde. sempre mais forte se fazia em mim a impressão de que minha vida houvesse fracassado, e, além disso, receava recair em crises de loucura. numa manhã de domingo tentei suicidar-me com um tiro de pistola que disparei contra meu próprio peito. a morte, porém, não chegou logo, como sinal de que até nisso fracassaria. até mesmo a morte me rejeitava. caí em total desgraça e meu único desejo naquele instante era que me deixassem morrer tranquilo.

em suma, minha vida efêmera foi uma batalha contínua entre meu temperamento tímido, desajeitado, incapaz de um contato com os demais homens, e meu desesperado desejo de exprimir-me, de comunicar com meus semelhantes. revoltado contra tudo que fosse convencional e não sentido, dediquei minha breve vida a exprimir a mim mesmo, com a mesma intensidade que sentia. servi-me da letra para traduzir meus reais sentimentos contra uma sociedade cruel, egoísta e ignorante, que assassinou o amor com suas mentiras. mas também quis revelar, através do símbolo, toda luminosidade do céu e o calor do sol que haviam faltado em mim. escrevi e escrevi. como tomado pela frenética necessidade de falar logo antes que fosse tarde demais. durante minha vida não consegui publicar nada. ao passo que depois de morto fui, talvez, notado como excêntrico e provavelmente minha obra permanecerá para sempre ignorada como todo meu esforço caiará no completo abismo do esquecimento.