quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

na porta dos cabaréis

homenagem ao cego Oliveira


supondo-se que estivesse vivo naquele tempo devia estar com uns 40 e poucos anos e não tinha me arranjado em nada na vida. só andei por ai cagando e peidando, realizando tarefas banais a troco de migalhas. estava cansado e me sentindo com um século de vida desperdiçada. é isso o que chamam de vida? pois pra mim é uma espécie de morte. o sujeito nasce pra morrer e vive morrendo. a vida consumia a gente. consumia mesmo. e era tudo lixo. tudo a sua volta. o trabalho. a tv. a comida. a opinião pública. o senso comum. o normal. o anormal. a vida que as pessoas levam. cultuando bestas. sendo comandadas por idiotas. todos idiotas demais pro meu gosto. andava me sentindo muito idiota por fazer parte do mundo desses cretinos. pois o mundo é dos cretinos. eles ditam as regras. eles ocupam os espaços com a sua imundície. com toda a conversa mole de sempre. eles tocam a sinfonia e os ratos dançam feito zumbis chafurdando na merda.

eu andava me preocupando demais com essa porra toda. a vida. a morte. e todo o despropósito que separa uma coisa da outra. todo esse entulho se proliferando em minha mente. contaminando minha imaginação. não podia me concentrar com todo aquele barulho. não podia gastar mais meu tempo com aquilo. mas a vida era perda de tempo de qualquer jeito. não faz sentido mesmo.

mas saber que não faz sentido acaba fazendo algum sentido. então resolvi que amanhã seria um dia melhor.

eu precisava tirar férias. precisava sumir por uns tempos. mudar de cidade. de país. quem sabe saturno? precisava aparar o bigode e cortar as unhas e os pêlos do nariz. precisava de três mulheres e precisava ficar sozinho, às vezes. precisava comprar cigarros, tirar a cera do ouvido e me exercitar um pouco. precisava de um revólver - que é o pau mais duro que um homem pode ter...

esqueça tudo isso. eu só precisava arejar as idéias, clarear a mente um pouco, tirar o pó da goela. um pouco de diversão era o que eu merecia. todos nós, aliás.

sai pelas ruas um pouco mais confiante. sabia que era tudo uma merda mesmo e que a maioria das pessoas com seus cérebros de algodão doce não entenderiam isso nunca.
então me dirigi para o primeiro bar que fosse um pouco descente, o que pra mim significava bebida barata e um pouco de sossêgo. um homem precisa de um pouco de sossêgo, às vezes. passamos a vida toda inquietos, correndo atrás de algo que nunca sabemos extamente o que é. e quando descobrimos, vemos que não era nada daquilo que a gente pensava. só trabalho inútil. um monte de merda. então que pelo menos algum dia na vida um homem possa acomodar tranquilo o seu traseiro numa cadeira aconchegante e pedir uma bebida quente, para degustar enquanto fuma um charuto sem pensar em nada.
foi o que eu resolvi fazer.

o lugar parecia bacana. não tinha muita gente. alguns gatos pingados debruçados no balcão que atravessava todo boteco tomando conta da lateral esquerda de fora a fora. o garçon era um branquelo magro e comprido de bigode fino, parecia um cara desses que fazem alguma coisa no circo. atirador de facas. malabarista. palhaço. ou podia mesmo ser um anão disfarçado. naquele tempo eu não duvidaria de mais nada - se uma cadeira saisse voando eu não estranharia- mas acho que, ele, se trabalhasse no circo seria o limpador das bostas dos elefantes. mas no teatro da vida naquele exato instante ele era o garçon e eu, eu não sabia ao certo...

havia algumas mesas espalhadas pelo resto do salão e estavam quase todas desocupadas. escolhi uma mais no fundo, onde ninguém fosse me perturbar. o cara do circo me disse:
- o que manda chefe?
- sem essa cara. quem tem chefe é indio. eu só quero uma cerveja gelada.
ele me pareceu meio ofendido com o que eu disse e perguntou antes de ir:
- mais alguma coisa, cara-pálida?
- uma cachaça pra quebrar o gelo.
ele ainda me perguntou antes de ir:
- o senhor não deseja conhecer o andar de cima. temos ótimas estalações.
- não quero me hospedar, só vim atrás de um pouco de sossêgo e uns bons tragos.
- ok, sendo assim, sem confusão por aqui, hein!
- palavra de índio!

cada um que me aparece. deve ser um punheteiro da porra. cafetão dos infernos. as pessoas só pensam em foder foder foder foder foder e mais nada. isso é coisa pra bicho. se você não encontra alguem bacana a foda nem vale a pena. pagar pra foder, nem fodendo. de qualquer jeito é sempre meio deprimente.

quando o tocador de realejo foi chegando com a bebida eu pensei que teria o meu momento naquele dia. enxuguei o suor da testa e acendi um cigarro pra espantar os mosquitos. ele botou a bebida na mesa meio insatisfeito, jogou a ficha e mandou que eu pagasse na saída. se virou para o balcão e foi se afastando e eu não pude evitar o pensamento de que ele era um velho chipanzé doente se arrastando de um lado pro outro em sua jaula apertada. dei uma golada na cerveja e uma bicada na pinga, uma boa tragada no cigarro e a fumaça se dissipando em aspirais circulares, se espalhou feito nuvens seduzindo minha atenção, diluindo qualquer pensamento possível. um espécie de nirvana momentâneo. que é difícil descrever por que a experiência não requer palavras, segue outra lógica, a lógica dos sonhos, dos devaneios, dos delírios, enfim, foda-se,quem quiser saber melhor que levante seu traseiro daí e vá para as ruas experimentar as melhores e as piores coisas da vida. na maioria das vezes é tudo merda. mas não dá pra negar que as melhores coisas do mundo geralmente também são as piores.

tinha uns coroas interessantes por ali. uns caras das antigas. pareciam ter sido durões no passado, enquanto ainda não eram esses maracujas de gaveta que estavam ali bebendo e ouvindo música sertaneja. eu mesmo já estava me sentindo um cara das antigas. não me enquadrava no meu tempo. considerava o passado uma merda e o presente ainda mais. o que me mantinha vivo era o futuro. não que fosse alguma novidade ou que eu tivesse grandes esperanças. no fim ia dar tudo em merda mesmo. porém eu queria estar lá pra ver. queria saber como era essa coisa de morrer e tal. de qualquer jeito já tinha chegado até ali e iria até o fim. pensar assim era o meu jeito de ser um cara durão.

sequei aquela garrafa. matei a pinga e pedi outra rezando para que a mulher barbada não puxasse assunto comigo.

o garçon do circo de pulgas me pareceu indiferente dessa vez. enchi o copo e fiquei bebendo sem prestar atenção em nada - ouvindo aquele barulho ensurdecedor de gente conversando ao mesmo tempo e música tocando. e os grilos. e as cigarras. o cacarejo das mulheres. cadeiras se arrastando. copo quebrando. risada. grito. o eco dos ouvidos. todos esses sons misturados eram um mantra relaxante se você não parasse pra pensar, avaliar melhor a circunstância. de modo algum eu queria avaliar qualquer coisa. foda-se. já havia decidido. é preciso ser forte para saber com o que se está lidando e ainda continuar nessa. de alguma forma eu queria ter o controle.

bebi mais e mais. muitos cigarros. mais uma. mais outra. as garrafas vazias foram se empilhando em cima da mesa e eu já estava mais confiante do que devia. já não me importava se o mundo era um mar de bosta ou um paraíso afrodisíaco cheio de virgens. depois da décima cerveja seguida qualquer homem perde as estribeiras e acaba sedendo aos impulsos animalescos que são muito potentes quando se está de porre.

ela se aproximou da minha mesa. belas pernas. cabelos negros. e olhos de pantera. besta, ofereci um drinque. ela aceitou, é claro. sentou-se. cruzou as pernas. que pernas! ficamos ali jogando conversa fora. aquele velho blá blá blá de sempre. cada vez ela chegando mais perto. já podia sentir seu hálito de cigarro de menta. eu não ouvi uma só palavra. enquanto ela tentava me ludibriar na bicaria, meus olhos conversavam com aquelas pernas.

não conseguia pensar em outra coisa. me esforcei mesmo pra pensar em qualquer outra merda. na condição humana. em toda a merda política e financeira. na fome. na miséria. na porra da vida que se leva. na morte.

mas nada, nada funcionava. eu parecia a besta fera babando e só pensava com a cabeça de baixo. ela sem fazer cerimônia sentiu minha fraqueza e foi logo dando o bote. fez-me um elogio qualquer e eu baixei a guarda. então botou as mãos por debaixo da mesa e começou a acariciar a minha pica, que já estava quase estourando só de estar tão próxima daquelas pernas. eu queria aquelas pernas de qualquer jeito. queria entrar no meio delas. quando nascemos saimos do meio das pernas, é uma tendência natural querermos voltar para lá. naquele instante eu me casaria com aquelas pernas. antes do padre abrir a boca eu diria sim sim sim e cairia de joelhos.

ela percebeu que a coisa estava ficando quente e quase que bruscamente recolheu as mãos das minhas partes e pediu outro drinque. a desgraçada bebia mais que opalão seis canecos.
comecei a tentar prestar a atenção. fodeu. não podia me livrar do apelo daquelas pernas. e ela sabia bem o tesouro que guardava ali. e eu estava afim de descobrir qual era. não que eu já não soubesse como era, mas a gente sempre pensa que é um mistério de novo. a gente é trouxa pra caralho.
é assim que a banda toca. é assim que desperdiçamos energia. é isso o que aspiramos com outros pretextos. é isso o que chamamos de vida? é puxar a cordinha e ver a merda descer pelo esgoto. no fundo é só isso sobre o que escrevemos. é esse o motor da máquina. a razão da bolsa de valores. a causa dos conflitos internacionais.
perdão, mas bêbado pensa alto, por isso é mais sincero.

ela fez sinal com os olhos inclinando a cabeça e apontando pra escada. se lavantou ajeitando a saia curta e saiu rebolando na minha frente. a dança louca daquelas pernas - o velho ritual do acasalamento . e eu era um macaco punheteiro no cio seguindo aquelas pernas como os ratos encantados seguiram o flautista para fora do reino. seu feitiço era forte. seu preço, nojento. era terrível saber que ela estava fazendo aquilo por dinheiro. eu poderia lhe dar coisas mais interessantes, mas ela preferia dinheiro. depois pensei que se eu fosse ela talvez faria o mesmo. escrever de graça é um pecado mortal. cada um tem que usar o que tem. tudo vale a mesma coisa. entre a literatura e as pernas. eu fico com as pernas. pelo menos foi o que pensei na porta do quarto.

meia hora depois - foi o que pude pagar- eu estava do lado de fora. como se tivesse levado um belo chute no traseiro. e de fato a vida era um belo chute no traseiro da gente. e a morte o que seria? se persistirmos na vida um dia saberemos.

mas por enquanto eu precisava de mais um trago. minha grana já tinha miado. saí do bar e me sentei no meio-fio. de volta à estaca zero.

de repente um velho cego cantador se aproximou de mim com sua rabeca e eu já fui logo lhe avisando que não tinha um tostão. ele sacou de seu rude instrumento e tirou dele um som estridente e meio irritante com suas mãos calejadas. seus versos falavam sem fazer curva, sem nenhum vareio

seu moço não façavoroço
eu canto com muito gosto
pra quem quisé mi ouvi

eu canto só pu prazê
u qui eu não posso vê
cantando eu tento esquecê

nas pensões, nos botequins e nos hotéis
numa vida di prazê

u tempo foi si passanu
acabou-se a minha vivênça
i tudo foi si acabanu
uqui eu tinha di riqueza
perdi até o sossêgo
não mi deram mais emprego
nem sapato pra meus pés
acabou-si a fantasia
eu vou terminar meu dia na porta dus cabaréis.





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