sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Estomatite Crônica



Em meados de agosto, por um vento cortante e extremamente frio, saía um rapaz de um cubículo alugado, na rua Arauá, e, caminhando sem jeito, dirigia-se à sociedade propriamente dita. Discretamente, evitando chocar-se com as pessoas.
O buraco em que vivia ficava precisamente debaixo de uma viela no fim de uma escadaria e parecia mais uma caixa de sapatos do que um quarto. Puto da vida com as pessoas, estranhamente, temia encontrá-las, porquanto desviava-se sempre do seu caminho. Todas as vezes que agia desta forma sentia uma mórbida sensação de covardia, que o envergonhava e o fazia franzir as sombrancelhas. E isso não porque fosse covarde ou tímido, pelo contrário; simplesmente havia algum tempo que se encontrava num estado de excitação e nervosismo que se sentia como se estivesse acometido por uma doença mortal e silenciosa.
Tão apegado as suas dúvidas e decepcionado com o mundo das pessoas, se internava cada vez mais dentro do seu invólucro carnal, se afastando dos outros, abominando a ideia de conviver com eles e participar de seus negócios.
A miséria humana o deprimia; mas até isso lhe era indiferente. Abandonara suas ambições e seus trabalhos cotidianos, não queria se preocupar com absolutamente nada. Ter de escutar todas as tolices das pessoas, estúpidas até o absurdo, e que não lhe interessava nem um pouco. Todos aqueles disparates, cobranças, ameaças e lamentações. Falar, falar, desculpar-se, mentir…
Às vezes ele sentia vontade de dar cabo a essa angustia tola que encenava nos palcos urbanos da vida. Mas suas mãos tremiam tanto diante da dúvida que ele fumava cada vez mais. Fumava estupidamente demais. Depois de muitos cigarros, se perguntava: porque sofrer tanto com aquilo? Por que se descabelar por essas migalhas? Por que se aborrecer tanto por essas bagatelas?
A aridez, os empurrões, o caos por todos os lados estampado em seus olhos vidrados, enfeitiçados. As pessoas e suas coisas, elas mesmas coisas, seus carros & suas casas; a umidade, a fumaça, o mal cheiro característico velho conhecido de todos os trastes que habitam esses tristes casebres cravados no ânus da cidade. Tudo isso junto causava uma impressão terrivelmente desagradável nos nervos do rapaz. O triste colorido dos cartazes. O cheiro insuportável dos bares e os bêbados. As pessoas se amontoando pelas ruas, desempregadas, desesperadas, exploradas, fodidas… sem saber de nada, falando bobagem o tempo todo. O barulho disso tudo junto lhe era ensurdecedor.
Decorrem dez minutos. Respira ruidosamente. Sente o coração oprimido, palpitante. Os pés paralizados, voz atônita, deitaram raízes na terra. Quis gritar, mas na garganta tinha um sapo atravessado. Caiu num abismo do mais completo silêncio. E tudo conteve no imenso vazio de si.
No dia seguinte, às dez, acordou preocupado e sério. Muitas dúvidas e hesitações o assaltaram pela manhã. Recordava os pormenores da situação que em sua totalidade lhe escapava – havia lhe acontecido algo estranho que nunca antes lhe ocorrera. Uma impressão completamente nova que não podia ser comparada com nenhuma outra que já tivera.
Guardou tudo isso em bolsos diferentes e caminhou depressa com passo firme e, embora se sentisse a própria merda viva do mundo, tinha plena consciência de tudo. Era preciso andar depressa enquanto tinha força e ainda lhe restava alguma lucidez.
Porém, para onde ir?
E ir contaminado de pressa e rotina, sem nenhum estilo? Amontoado como material bruto, sem vida, sem escolha? Sacolejando, empurrando, empurrado, espremido, em fila, matando e morrendo a cada dia? E quando chegar a hora? provavelmente não restará mais nada para morrer.
Depois de ter examinado tudo aquilo, bem, outra vez, não podia evitar o constragimento e o desprezo, levou as duas mãos aos bolsos e lançou para o universo.
c.

Um comentário:

  1. muito bom. acho que seria muito estranho ter conhecido em vida o kafka. provavelmente não restará mais nada para morrer. adorei isso.

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